quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

Entrevista à Revista Cinzas no Café


Por Davi Nunes

Por e-mail deu-se a entrevista permeada de um lirismo, de uma eu enunciador que se quer e se manifesta negro, da Cinzas no Café com o bancário, graduado em história, poeta, contista, compositor e educador baiano, Lande Onawale. Lande teve seus primeiros poemas publicados no início da década de 90, no Jornal Nacional do Movimento Negro Unificado (MNU). Notabilizou-se pelos brilhantes poemas e contos publicados em diversas antologias: Quilombos de Palavras (BA), Terras de Palavras(RJ) Black Notebooks (EUA), Cadernos Negros (SP) entre outras. As suas publicações individuais são os livros: O Vento (poemas), Kalunga – poemas de um mar sem fim/poems of an infinite sea e Sete: diásporas íntimas (contos).

Davi Nunes(DN) - Lande, a infância, para grande parte dos escritores, é um berço de inspiração. Na sua infância em Salvador se encontra os elementos que o construíram como escritor?

Lande Onawale(LO) - Penso que sim, mas como algo inevitável, uma inspiração não exatamente consciente. Já se disse que a pessoa é, aos 80 anos, o que já era aos 8... Sendo uma fase onde se consolidam aspectos fundamentais da nossa afetividade e cognição, fatalmente é um minadouro de emoções pra toda vida. Por outro lado, há também uma atitude, essa, sim, consciente de resgatar situações que uma dose de poesia que eu julgue capaz de tocar, instigar, estimular o leitor presente.

DN - Sabemos que a branquitude, o embranquecimeto dificultam aos negros o empoderamento de uma identidade afro-brasileira, mas no caso da sua literatura... quando foi que surgiu, em seu texto, um eu enunciador que se quer negro ou ele sempre existiu?

LO - Num país racista como o Brasil, o desenvolvimento de uma Consciência Negra figura-se como um renascimento. Mal saído da adolescência, com 19, 20 anos a partir da minha aproximação do Movimento Negro, é que meu olhar sobre uma boa parte da existência humana começa a mudar – e a literatura, consequentemente, acompanha essa mudança.

DN - Como foi o processo de mudança do nome de origem colonialista para a apropriação identitária do nome africano, constituindo a família Onawale?

LO - Foi algo, digamos, natural pra mim, óbvio. Uma necessidade de ir mais fundo - além do pré-nome - no questionamento de uma herança mais que colonialista, escravocrata.

DN - Quantas áfricas cabem em seu coração? A mítica, a moderna ou ela toda em sua grandiosidade cultural, linguística e continental?

LO - Repito o que já disse a socióloga Vilma Reis: queremos todas as Áfricas, inclusive a mítica!

DN - A elite brasileira é tão racista e atrasada quanto um republicano americano de cem anos; sua obra literária, além de ser uma expressão estética, surge para a superação desse racismo?

LO - A minha necessidade de expressão literária surge com objetivos menos pretensiosos... Em algum momento – e sabe-se lá por que – veio essa vontade de escrever sobre meus próprios sentimentos, sobre as idiossincrasias do mundo e do ser humano. Depois, quando ‘renasço’, é que passo a achar que a literatura que faço pode ajudar no combate ao racismo e ao preconceito racial.

DN - Como se dá a relação de sobrevivência e criação literária do escritor negro? A busca do ganha-pão imponderável dificulta o aprofundamento em gêneros mais extensos como o romance, que exige maior tempo disponível à escrita?

LO - Sem dúvida, a labuta diária é um dificultador ao processo criativo de algo mais complexo, como um romance, mas eu acredito muito na disciplina, como meio de solucionar ou amenizar o drama dessa equação – embora eu seja um indisciplinado... Outro dia, inclusive, ouvi Cuti dizendo que, ao menos em respeito à vida conturbada de Lima Barreto, devíamos nos constranger ao ficar reclamando de certas condições inadequadas para a criação.

DN - Sete: diásporas íntimas seu livro de contos, que desponta poderosos personagens e signos afro-brasileiros, através de uma escrita enxuta e madura, foi inspirado na divindade afro-brasileira Esù, como foi o processo de escrita e de reverência ao orixá?

LO - Em verdade, ainda não fiz um livro conceitual, digo, criado a partir de um conceito. ‘O Vento’, “Kalunga...’, ‘Sete...” todos foram ‘montados’ e, talvez, haja algum mérito na edição, pois busquei uma coesão entre forma e conteúdo. Assim, não houve uma inspiração ‘direta’ em iNzila/Exú, mas privilegiei textos onde estivessem presentes aspectos essenciais desse iNkisi, dessa energia. Sete (ou Se7e rsrs), aqui, não é um numeral, mas um conceito – talvez até um substantivo...próprio.

DN - A torre de marfim dos clássicos já lhe seduziu, ou os tambores poéticos dos quilombos foram sempre os instrumentos da sua inspiração?

LO - Já, sim. Por sedução, ou por imposição. Somos quase todos um tanto corrompidos pelo racismo, pelo eurocentrismo, né? A pesquisa da Profª Drª Dalcastagné, constata que quase 100% dos autores e personagens da literatura brasileira contemporânea são brancos! Se pensarmos que essa realidade é reproduzida pelos meios de manutenção da cultura e da educação – escola, universidade, teatro, ciname, televisão...pô, quase que não há como escapar... mas há o tambor, né? “Tem um tambor, tem um tambor, tem um tambor... tem um tambor, dentro do peito tem um tambor” grita Carlos Assumpção. Aí você entende quando falo em renascimento. Fui aprender já grande a usar a caneta como ‘agdavi’...

DN - Qual a importância dos cadernos negros para a literatura brasileira e para você já que tem trabalhos publicados neles?

LO - O Cadernos é uma das antologias regulares mais longevas das Américas – senão a mais. Só por isso, já é revestida de enorme significado para a literatura brasileira. Contudo, o Quilombhoje com o Cadernos Negros e outras iniciativas trazem para a cena literária nacional, essa voz negra silenciada, de que nos fala Dalcastagné. De algum modo, penso que nosso texto vem (inter)ferindo a ideia hegemônica (e eurocêntrica) do que se concebe secularmente como literatura, como ‘boa’ literatura. Para mim, a publicação foi crucial por, pelo menos, duas razões: onde primeiro publiquei, em livro, e onde começo a lidar pra valer com a crítica – o processo de seleção dos textos previa que autores, teóricos e leitores, pseudoidetificados, avaliariam todos os textos.

DN - O mercado editorial para os escritores negros e temas afro-brasileiros ainda é muito fechado?

LO - O mercado editorial para autores e temas proscritos é muito fechado, e nós, negros, bem como nossa vida fazemos parte da “lista branca”, dos assuntos tabus – sobretudo quando enunciados por nós mesmos. Evidentemente, a sociedade se transforma, a luta pelo reconhecimento da nossa humanidade avança e, fatalmente, vemos luzes no que se pensava ser o fim do túnel. Eu tenho, ainda, uma confiança muito grande no poder da literatura de tocar as pessoas, de seduzí-las, encantá-las, cativa-las dentro de um desejo de liberdade de imaginação e expressão.

DN - Por fim, que lição você deixa para os escritores que se iniciam na escrita de uma literatura mais ensolarada, buscando expressar os sentimentos azeviches presos na alma?

LO - Não chamaria de lição, mas de confissão: descobri que o grande sol vai dentro de cada um de nós. Não devemos temê-lo, porque o medo é, como sabemos, o avesso da realização. O racismo nos interdita a nós mesmos e, como consequência, ficamos proibidos, desautorizados a emitir uma voz que soe autônoma, a proferir nossas verdades sobre o que quer que seja. Nesse sentido, ser um escritor ou escritora é o que a sociedade racista menos espera de um(a) negro(a), escrever seria quase nosso avesso, pois o que mais fazemos nós ficcionistas senão inventar mundos e verdades? Agora imagine se dissermos que o mundo é negro, então...Ah, não! Essa não! Assim já é demais! Rsrs Eu não temo escrever sobre mim/nós, sobre “feridas que ainda estão abertas e sendo mexidas”, como já disse a escritora Toni Morrison... Ao contrário do que dizem alguns autores e críticos (negros, inclusive), a minha luta não me limita (nem a minha literatura), a minha luta me liberta! Dentro de cada peito negro está toda a humanidade, dentro de cada suspiro, cada riso, cada grito.

Revista Artístico-acadêmica Cinzas no Café. Edição 3, novembro/2012, p.11-13.
Facebook: http://www.facebook.com/revistacinzasnocafe?fref=ts

sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

CARAPINHA. MUITO CARA...

para Lumusi Munzanzu (Lucimara da Cruz) e Cláudia A. Santos, meninas do Curuzu.

Cadiveu. Ou cadáveu, como diria o Adún.  Sem dúvida, é uma das coisas que mais irritam os brancos em geral, e os racistas – brancos ou não – em particular: nosso cabelo. Também pudera. Como a pele da maioria de nós, nosso cabelo quer existir no exato sentido contrário do deles. Para cima! E o mais absurdo, contudo: gostamos. Abusamos. Às vezes, até reinventamos novos modos de estar bonitos através deles, os cabelos. Só pra chatear? Talvez... A cada vez (com ou sem trocadilho) que a indústria cosmeticida bombardeia a mídia, intoxicando tantos de nós, outros tantos exalam o orgulho de ser como somos. A consciência avança. O sentimento permanece. Imagino os brancos da publicidade, em noites insones, ou entorno de chops alegres, buscando uma nova ideia que nos convença, a nós pretos, de uma vez por todas: É ruim! E não é cabelo. É ‘algo’. Há décadas, gerações de marqueteiros tentam cortar o meu pela raiz. O nosso. São bons brasileiros, os publicitários... Não desistem nunca. E nós? Também não.
Fomos mais do que testados no Século XX. E por diversas vezes quando a opressão racista quis tocar com sua mão assassina o âmago da nossa existência (o nosso amor próprio), nossos cabelos gritaram. Se puseram de prontidão. Marchando eretos pelo Harlem, balançando proféticos pelas ruas de Kingston, ou multiplicando no Carnaval de Salvador as tranças de uma geometria ancestral. De todos os modos, eram gritos. E ainda hoje os ecos daqueles gritos nos ajudam a ficar de pé. No round. Temos ido às cordas, é verdade... mas a lona está muito, muito mais distante.
Há muitos tesouros guardados em nosso cabelo. E não dentro dele, é bom que se diga, já que a publicidade no Brasil já o quis até como “porta-treco”. O tesouro no nosso cabelo é ele mesmo, em si, as formas que assume, o zelo com que o tratamos. A riqueza é aquele delicado e último tapa no Black, é o desenho Adinkra resgatado no sonho de uma trançadeira em algum ponto da Diáspora, é a magia de cortar o tempo e o ar com as mais belas e encantadoras tranças horrendas... Nosso cabelo ainda guarda - fora de si! – sua maior preciosidade: pares de mãos profundamente sensíveis, devotas da beleza, e que se sucedem há gerações. Outras gerações.
Talvez pese 'espiritualizar' a discussão, mas gosto de pensar que somos criaturas divinas. Então, podendo ver no próprio corpo a imagem e semelhança do belo. Pelo cabelo. Uma beleza natural... (Êpa! Beleza natural...assim... natural, entende? Tipo natural, natural... sem enrolation). Temos, sim, que ouriçar nossas vozes! Afinal, não tem sido nada livre o arbítrio do alisante...  Os racistas nos querem contra Deus. Azar o deles. Não seremos. 

Touche pas! A minha carapinha é livre! E cara. Muito cara...

                                                                                                      Lande Onawale